Eu tenho plano B, C, D, o alfabeto inteiro: o dia a dia no curso de costura de uma de nossas acolhidas

“ALMOÇO!”, diz a tia da cozinha. Sara (nome fictício) salta do sofá de estampa xadrez com a agilidade de uma gata e desce o corredor a passos largos. É a primeira a chegar, já vai logo se servindo. Come com um olho no prato e outro no relógio. “Eu faço tudo o mais rápido possível pra num garrá”, diz ela, “depois que gritam o almoço, eu como, me arrumo rapidão e pego minha bolsa”. Nela vai a apostila, retalhos e tudo que é necessário para o “curso”, sua boca até enche d’água tamanha a animação, é bem nítido que está “amando”. O que faz depois é caminhar até a Estação Carlos Prates, é um pulo, fica bem na rua de baixo, não tem erro. Apesar de ser uma “pessoa mais fechada”, como ela mesma se descreve, é quase impossível esconder sua animação. É mais um dia de aprendizado.

O metrô está bem cheio, mas ela vai para frente do vagão e dá seu jeito. Diz que “o pessoal se amontoa lá trás porque tem preguiça de ir mais pra frente, e aí eu vou!”. Apesar de amar andar de metrô, ela não gosta tanto do novo modelo, acha as cadeiras pequenas, “por isso, até prefiro sentar no chão”. Quando o metrô bica a Estação Santa Inês, ela se levanta toda-toda, ajeita a bolsa e salta do metrô. Sobe o morro que leva à unidade do Senai Horto. “Nossa, lá é bonito, grande. Do lado tem um museu”. É o Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, diz ela que “já até vi um esquilo lá outro dia”. O curso começa às 13H30 e vai até 17H30, mas ela sai mais cedo porque estuda no turno da noite. “Comecei em agosto de 2023 e vou terminar em julho do ano que vem”, ela diz. E pela sua animação, o tempo voará, diferente do último curso que fez.

É voltado para a informática. “É uma área que não gostei, pensava e agora, vou embora?”. Mas terminou. “Cheguei a concluir, mas pra nunca mais, não me vejo nessa área de novo”. Apesar de gostar de computador, achou “extremamente chato, a única coisa que gostei foi saber a senha da internet dos outros, cabô!”. Além de não der dado química com o curso, também não se deu tão bem com os colegas. Se sentia excluída por eles, “eles se esforçavam mais do que eu e nos trabalhos, não sabia o que fazer”. Bem diferente no novo curso, “converso com mais gente, tenho assuntos mais interessantes e ideais novas para contar”. Como a vontade de ter um ateliê, por exemplo.

Mas caso não role, não terá problema em pegar outros caminhos. “Se não der certo na costura, vai ter o plano B, C, D, o alfabeto inteiro”. É por isso que acha importante ter um leque de possibilidades. Um deles pode ser a ASPROM (Associação Profissionalizante do Menor). “Vou seguir em outras áreas, juntar o dinheiro e investir na costura”. Por enquanto, está focada na costura. Sabe que não pode ser diferente. A costura exige isso dela. “É muito chato colocar linha na máquina, ela é muito fina e aí tem que ficar passando aqui e ali, qualquer erro, já era, tem que desmanchar”. Então, o foco é primordial. E, para se ter uma ideia, ela nunca falta, vai até passando mal. Com o esforço, já colheu um fruto. É uma bolsa preta de retalhos, ela a exibe para cima e para baixo, é com ela, inclusive, que vai ao curso. Diz, para quem quiser e toda cheia de si, “fui eu que fiz”.

   Rafaela Francia, psicóloga da Unidade de Acolhimento Casa Tremedal, onde são acolhidos adolescentes de doze a dezoito anos incompletos e onde Sara está, comenta que a inserção ou participação em cursos de aprendizagem são um direito dos adolescentes garantido pelo ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. Para ela, eles são de extrema importância para a preparação do jovem, “eles possibilitam o desenvolvimento e habilidades técnicas”, diz ela, “e também permitem qualificá-los para futuras oportunidades de emprego, promovendo sua autonomia e integração social”. Tem outra questão que a psicóloga traz: a inserção no mercado de trabalho. “É fundamental no desenvolvimento da autonomia, socialização e na gestão financeira pessoal destes adolescentes”.

E Sara, pelo que conta toda animada, está vivendo essa socialização na pele: “meus colegas de classe, apesar de não conversar com todos, ajudam muito, são muito educados, me senti até acolhida lá, é como me encontrar”, diz ela sorrindo. A gravação do áudio para, ali encerramos o assunto e nos despedimos. Mais tarde, o sinal é dado: “ALMOÇO!”. Sara dá meia volta e vai a passos rápidos pelo corredor, até sumir e vista. E o resto já se sabe, já foi dito. É mais um dia de aprendizado.

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